2 de fevereiro de 2012

orphans cry blood, IV.

ㅤㅤAs vizinhas fofoqueiras meteram-se nas portas e janelas para espiar o motivo das sirenes e da presença das viaturas. Depois que os policiais correram para a casa escancarada e saíram olhando desesperadamente para os lados, uma das expectadoras gritou e apontou para Melany, que tomava um gole de whisky nesse momento. Não olhou para trás, e não parou. Apenas suspirou e continuou andando, no mesmo ritmo.
ㅤㅤOs policiais derrubaram sua garrafa e seu cigarro. Fora algemada, leram seus direitos e ela acompanhou os policiais até a delegacia. Não haviam provas suficientes, mas a testemunha ocular foi o suficiente para mantê-la presa.
ㅤㅤO assassinato fora uma matéria e tanto para a primeira página dos jornais da cidade toda no dia seguinte.
Obviamente, Gordon ficou sabendo.
ㅤㅤMelany Winckler foi acusada pela morte de sua mãe, Sarah Sanchez, e de seu namorado, Daniel Perón. Os jornais dizem que foi premeditado e que não havia como Mel escapar do julgamento.
ㅤㅤEles se enganaram.
ㅤㅤNo dia seguinte ao julgamento de Mel, os jornais davam a notícia: Melany Winckler fugiu da prisão um dia antes do julgamento, e ninguém percebeu sua falta devido ao excesso de presos instalados. Atualmente está foragida, e seu julgamento fora adiado até a encontrarem. A sua história de abandono vazou para a imprensa e agora o júri não está mais tão certo quanto antes sobre a culpa da garota nas mortes. A imprensa também abriu um tipo de polêmica sobre se ela realmente merece ser julgada pelos crimes, ocorrendo a possibilidade de cancelarem o processo e sua ficha continuar limpa.
ㅤㅤMelany não estava se importando com essa discussão toda sobre si mesma na mídia. Na verdade, ela nem mesmo pretendia fugir da cadeia. Enquanto cortava e descoloria os longos e negros fios de cabelo, ficava remoendo em sua mente aquela cena: estava sentada em um canto da cela, com outras 7 mulheres, fumando. Uma das mulheres tinha visita no mesmo horário que ela, portanto, desceram juntas para a sala. Essa mulher viu Gordon. Quando voltaram e Mel continuou a fumar, aquela mulher veio conversar com ela.
― Ei, garota... De onde conhece o sr. Winckler?
ㅤㅤMelany não entendeu a pergunta e ficou confusa.
― Winckler é o meu sobrenome. Eu não conheço nenhum sr. Winckler, e não vejo meu pai desde os 9 anos de idade.
― Então quem era aquele senhor que estava falando com você lá embaixo?
― Gordon. Ele é dono de um bar que eu frequento.
― O nome dele não é Gordon. O nome dele é Richard. Richard Winckler.
ㅤㅤAquelas palavras estagmatizaram a mente de Mel. Ela ficou parada por bastante tempo.
― Não é possível.
― É, sim. Eu trabalhei pra ele.
― ...
ㅤㅤEla não foi capaz de falar mais nada. Fugiu nesse mesmo dia.
ㅤㅤAgora ela tinha assuntos pendentes com "Gordon" e não poderia se dar ao luxo do risco de não resolvê-los. Ao terminar de descolorir os cabelos, tingiu de um tom alaranjado e protegeu-se com um moletom velho. Acendeu mais um cigarro, óbvio, e iniciou uma breve caminhada em direção ao bar do sr. Winckler.

17 de dezembro de 2011

orphans cry blood, III.

ㅤㅤO whisky estava mais ou menos pela metade quando Mel chegou em frente à casa em que sua mãe estava morando atualmente. Era um bairro tão vagabundo quanto o prédio; sujo, podre, enojante. Um tipo de beco, aparentemente. Na outra calçada havia uma caixa escondida. Deixou o que restava do whisky ali, e recolheu cuidadosamente um taco de baseball metálico, segurando-o com um pano por cima. Acendeu mais um cigarro e se encaminhou até a porta.
ㅤㅤMelany agia de forma completamente normal. Contudo, podia-se notar pelo olhar que não estava normal.
ㅤㅤEncostou a orelha esquerda na porta, a fim de ouvir algum ruído e saber se a visita não seria à toa. Ouviu os gemidos da prostituta que ela conhecia muito bem, a Sarah. O sangue fervia, aquecido pelo whisky.
ㅤㅤDesencostou da porta e golpeou a maçaneta com o taco. Estourou. Chutou a porta com a sola dos pés para entrar.
ㅤㅤOs gemidos haviam parado. Provavelmente agora o casalzinho nojento estava procurando a origem do barulho e uma forma de se proteger.
ㅤㅤMel simplesmente caminhava pela casa calmamente, procurando de cômodo em cômodo pelos dois.
ㅤㅤFinalmente, viu-os se aproximarem no escuro, apavorados e acuados. Até que, então, Sarah identificou a invasora: sua própria filha.
ㅤㅤCom um suspiro completamente falso, parou de se esconder e começou a tratar Mel como se nada tivesse acontecido, caminhando em sua direção.
― Mas que susto que você nos deu, Mel. ― Melany continuou caminhando ― Minha filha queri...
ㅤㅤSangue.
ㅤㅤMelany golpeou a lateral do rosto de Sarah antes que ela terminasse a frase. O chão de madeira estremeceu com o peso do corpo caindo.
ㅤㅤSarah colocou instintivamente as mãos no rosto, para se proteger. Melany posicionou-se sobre ela, sem dizer uma palavra. Continuou a golpear sua face, quebrando os dedos que estavam na frente. Em segundos, aquilo virou um pequeno amontoado de cabelos, sangue, ossos e cérebro.
ㅤㅤO homem que estava transando com sua mãe estava estático. Correu quando Melany começou a caminhar em sua direção, mas o desespero logo fez com que se atrapalhasse, o que deu à Mel a oportunidade de golpeá-lo de raspão. Ele caiu, e teve o mesmo fim de Sarah.
ㅤㅤSoltou o bastão, acendeu um cigarro e saiu da casa. Ouviu sirenes da polícia ― infelizmente, sua mãe e o namorado eram bem barulhentos -, mas isso não fez com que se apressasse. Apenas pegou a garrafa de whisky onde havia deixado. Antes de sair do quarteirão, as viaturas chegaram.

5 de dezembro de 2011

orphans cry blood, II.

ㅤㅤMel já havia ido embora quando Gordon abriu o bar. Levou uma garrafa barata de vodka e deixou uma nota sobre o balcão, onde podia-se ler "obrigada" escrito à lápis. Sentiu outra dor no peito.
ㅤㅤEstranhamente, a garota não apareceu mais, por um período de quatro dias. Fora o suficiente para preocupar totalmente Gordon, sabendo que poderia ter acontecido algo grave com ela. Estava sentado no balcão, em uma noite de pouco movimento. Um neurologista e cliente, dr. Khrushchev, que estava próximo, notou sua preocupação. Tomou um gole da sua bebida e questionou.
― Algo lhe aflige, Gordon?
ㅤㅤGordon tentou se recompor rapidamente, levantando-se.
― Nada demais, doutor... ― olhou para o cliente, que ainda esperava uma resposta mais concreta. ― Uma garota costumava vir aqui quase todos os dias, e faz algum tempo que ela não aparece. Apenas pensei que talvez pudesse ter acontecido algo com ela. ― Tentando fugir dos comentários que viriam, deu os primeiros passos para dentro do bar.
― ...Garota? Não seria aquela jovem, a Melany?
ㅤㅤGordon voltou-se rapidamente.
― Isso, a Mel! Você a viu recentemente, doutor?
ㅤㅤKhrushchev tomou o último gole, finalizando a dose.
― Sim, Gordon, eu a vi. Ela está internada no hospital em que eu trabalho, sofreu um acidente de carro. Parece ter sido criminoso.
ㅤㅤA pressão e o corpo de Gordon caíram até o limite do chão sujo do bar. O doutor medicou Gordon.
ㅤㅤLogo eles chegaram ao hospital onde Melany estava internada. Gordon esperava ansioso pelo início do horário de visita, pensativo. Porém, uma figura que ele não via há anos interrompeu sua linha de raciocínio. Uma mulher degenerada, egocêntrica e vazia, que devia ter quase 40 anos agora. Gordon se lembrou de todos os anos em que transou com ela sem libido, da igreja decorada, das discussões diárias e do choro de Mel, a única coisa boa de que se lembrava dessa época. O nome daquela vadia era Sarah.
ㅤㅤGordon avançou sobre ela como um animal.
― O que diabos você está fazendo aqui, sua cachorra?!
Ela não respondeu.
― Diga alguma coisa, e rápido, antes que eu te entregue para a segurança.
ㅤㅤA mulher continuava quieta. Olhava para o lado, apaticamente.
ㅤㅤSoltou-a. Respirou fundo e voltou a sentar-se. Ela não estava mais lá.
ㅤㅤAlgumas horas depois, ele segurava as gélidas mãos machucadas e magras de Mel, carinhosamente. Ela estava com alguns grandes curativos ao redor da cabeça, mais pálida do que o comum, sem o piercing e com muitos ferimentos superficiais no rosto. Seus lábios continuavam rachados. Mesmo assim, ela estava linda.
― Como isso aconteceu, Mel...?
― Assim que eu sair daqui, você descobrirá, Gordon... E você, como me achou?
― Khrushchev me disse que estava aqui.
― Maldito. E o sigilo médico, ele não respeita?
ㅤㅤGordon esboçou um sorriso. Mel não muda nunca.
ㅤㅤO silêncio reinou após curtas falas casuais. Mel dormiu. Teria alta em 5 dias.
ㅤㅤEla não recebeu mais visitas de seu pai durante o período de internação.
ㅤㅤMelany Winckler recebeu alta do hospital no dia 19 de agosto, pela manhã. Ainda estava com vários curativos espalhados pelo corpo, porém, em sua maioria, nada relevante. No início da noite, ela apareceu no bar. Gordon moldou um sorriso nos lábios ao vê-la, principalmente por estar bem.
― Fico feliz com sua alta, Mel. Tem de se cuidar bem e... ― fora interrompido.
― Eu também, Gordon. Por favor, me dê uma garrafa do whisky mais barato que tiver.
ㅤㅤUma pequena pausa.
― Uma garrafa?
― Isso mesmo que ouviu.
ㅤㅤCom um suspiro, pegou a garrafa. A nota já estava a postos sobre o balcão. Mel nunca pegava o troco.
― E então, como aconteceu o acidente?
― Não se preocupe com isso, Gordon. Hoje eu vou resolver isso. Você vai ver.
― Como assim, "resolver", Mel? Vai se vingar?!
― Claro.
― Mas por quê?
― Porque eu não permito que a minha própria mãe tente me matar e saia impune.
ㅤㅤGordon ficou paralisado, novamente. Sua pressão estava diminuindo, mas lentamente.
― Nos vemos depois, Gordon.
ㅤㅤMelany saiu do bar antes que ele pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, com a garrafa nas mãos e o cigarro nos lábios.

30 de novembro de 2011

orphans cry blood, I.

― Aqui está, senhorita.
― Obrigada, Gordon.
ㅤㅤFechou os pálidos dedos ao redor do copo e levou-o à boca entreaberta. Lábios secos, machucados. A bebida queimava o caminho que fazia em seu organismo, e quebrava a onda de frio pela qual seu corpo pálido estava tomado.
ㅤㅤSorrateiramente, a chuva chegou. Ficava mais forte a cada instante.
ㅤㅤEla já estava começando a ficar bêbada.
― I want to know... Have you ever seen the rain...? ― sussurrava, para si mesma, enquanto olhava curiosa para o copo vazio. ― ...Coming down... on a cold mistake...
ㅤㅤA letra fora mudada propositalmente. O cigarro fora para os lábios.
― Poderia me dar mais uma dose dupla, Gordon?
ㅤㅤEle hesitou. Claro.
― Não acha que a senhorita já bebeu o suficiente, Mel?
ㅤㅤTragou o cigarro com calma, soltando a fumaça pelas narinas. Havia um piercing em seu septo.
― Se disser isso a todos, vai falir.
― Não digo a todos.
― Então não diga a mim.
ㅤㅤCom um aperto no peito, Gordon pegou a garrafa de conhaque e serviu a dose dupla de Mel. Seu cabelo era ralo, fraco e possuía um tom triste negro. Seu nariz era levemente curvado para baixo e ele possuía olhos da mesma cor do nome da garota: Mel.
ㅤㅤEsvaziou o copo de uma vez, deixou uma nota sobre o balcão.
― Boa noite, Gordon.
ㅤㅤO cigarro tremia entre os dedos, enquanto ela cambaleava em direção à porta. Gordon pensou em impedí-la, oferecer novamente o quarto dos fundos do bar para que ela dormisse, porém, ele não podia fazer aquilo. Iria acomodá-la. Acostumá-la. Mimá-la.
ㅤㅤA roupa fina e os longos fios de cabelo tornaram-se pesados e grudavam ao corpo. O cigarro continuava entre os dedos trêmulos, enquanto os olhos fechados pensavam estar enxergando o caminho de volta.
ㅤㅤDeitou-se sobre a sarjeta.
ㅤㅤO vômito fora lavado pela chuva, junto com o cigarro. Ela passou a noite ali, em posição fetal.
ㅤㅤAs lágrimas de Gordon escorriam por seu rosto enquanto ele olhava para ela ali, ao chão, completamente maltratada pela vida. Aconchegou-a em seu colo.
― Vamos tomar um banho e dormir em um lugar quente, Mel.
― Por que faz isso por mim?
― Porque é minha culpa.
― Eu poderia beber em qualquer boteco.
― É.
ㅤㅤEle apenas acatou. Não era daquilo que falava.
ㅤㅤMel possui 18 anos. Fora abandonada pela mãe aos 14 anos. Sua mãe não tinha carinho pela filha e não queria perder seu tempo com ela. Só a mantinha por perto por causa de seu pai, que a deixou aos 9 anos.
― Para onde estava indo?
― Eu não sei.
ㅤㅤSeu nome era Richard.
― Você tinha algum lugar para ir?
― ...Não.
ㅤㅤUm ano depois do abandono, o cartório mudou seu nome para Gordon.
― Estou com frio... ― adormeceu.
― Eu vou cuidar de você, filha.

21 de novembro de 2011

Reminiscência acizentada.

ㅤㅤHá alguns anos, conheci um homem. Ou ao menos acredito que o conheci.
ㅤㅤEle sorria, conversava, articulava. Era muito interessante e dificilmente não se notava isso. Porém, mesmo o tendo visto há tão pouco, notei uma coisa: Apesar de todos aqueles sorrisos e simpatias das pessoas ao seu redor, ele nunca olhava nos olhos de ninguém.
ㅤㅤUm cumprimento, uma gentileza e uma conversa nunca foram o suficiente para ele. Muito pelo contrário, ele preferia esperar durante anos, conhecer aos poucos, realmente conhecer. Quando, então, ele acreditava ser o momento, apenas sorria; e invadia seus olhos, sua mente, seu todo.
ㅤㅤO céu já estava escuro quando nos sentamos à mesa do restaurante, naquele fim de sexta-feira. Pedimos pratos quentes enquanto ateávamos os Marlboros; o meu, vermelho; o dele, light. Não trocamos palavras enquanto a refeição não chegara. Apenas tragos.
ㅤㅤCom uma leve música ao fundo, brindamos o vinho, comemos e enfim conversamos um pouco. Na verdade, conversamos bastante. Tal conversa possuía tamanha fluidez que simplesmente não reparei como o tempo correu para longe de nós tão rápido. A despedida seria ao final dos cigarros. O último cigarro é sempre o mais amargo.
ㅤㅤUm abraço, quente como o primeiro e frio como o último, estigmatizou aquela noite. Por frações de segundo, imagino ter sentido sua invasão.
ㅤㅤO restante da noite se arrastou lentamente, amontoando pontas laranja no cinzeiro.
ㅤㅤEssa noite se passou há alguns anos. Apesar dos anos, acredito que o conheci.

ㅤㅤEram belos olhos castanhos.

30 de outubro de 2011

Sarcasmo Sincero, II.

ㅤㅤBocejo e olhos cansados.

― Acho que já sei do que falaremos hoje.
― Bom dia, Raktavash.
― Não gosto de formalidades. E esse não é meu nome.
― Tudo bem... Vamos direto ao ponto. Ficou sabendo dos casos de assassinato e incêndio, certo?
― Sim, li alguns arquivos e alguns jornais.
― O que você acha disso?
― Seja mais específico.
― Não acha desumano queimar pessoas vivas?
― Não.
― Você já fez isso?
― Sim.
― E como se sentiu?
― A morte é a mesma. Um tiro na cabeça, afogamento, estrangulamento, esquartejamento... Todos matam. Meios diferentes para um fim comum.
― Acha que tem alguma razão para o assassino ter escolhido essa forma de assassinato para todas as suas vítimas?
― Óbvio que há uma razão.
― Qual seria?
― Por que eu faria o teu trabalho?
― Por que não faria?
― Você está com meu caso em mãos há 4 anos e não foi capaz de resolver. Que credibilidade acha que tem?
― Você está presa. Que credibilidade acha que tem?
― Credibilidade o suficiente para fazer você vir aqui pedir a minha ajuda.
― ...
― Você está se tornando mais inútil a cada visita. Volte quando não estiver tão entediante. Não gosto de desperdiçar meu tempo.

ㅤㅤAs algemas continuavam abertas, o sangue continuava em suas mãos. Quatro anos na cadeia, quase cem vítimas. Todas mortas.

1 de outubro de 2011

Sangue e fogo, I.

ㅤㅤE mais uma noite daquelas em que sua mente viaja em momentos passados enquanto seus olhos cansados estão fechados.
ㅤㅤEla via um grupo de crianças do orfanato a linchar um pequeno garoto, magro, espirrando lágrimas e sangue. Ele notou que ela o observava, entre um chute ou soco e outro. Fixou seu olhar derretido ao dela, e os lábios movimentaram-se a moldar as palavras "socorro", quase sem voz. Pensou em ir auxiliá-lo, porém, um herdeiro de grandes riquezas estava entre os agressores, com um pedaço de madeira em mãos. Aquilo poderia prejudicá-la. Com passos calmos, continuou sua ronda, como se nada tivesse visto.
ㅤㅤA esperança e o brilho nos olhos do garoto se esvaíram.
ㅤㅤEnquanto caminhava e rondava, tossiu. Uma súbita corrente de fumaça tomara o lugar onde estava, e piorava a cada instante que se passava.
ㅤㅤ"Estou sufocada, não consigo respirar... Preciso de ar, preciso de ar... Está quente... Estou morrendo..."
ㅤㅤE então seus olhos amedrontados se abriram rapidamente depois de um sutil e perigoso pesadelo.
ㅤㅤEstava quente. Estava sufocante.
ㅤㅤSuor. Calor. Asfixia. Cinza.
ㅤㅤFumaça.
ㅤㅤPor algum tempo, manteve-se estática. Provavelmente deve ter pensado que ainda estava dentro de seu sonho. As chamas precisaram invadir o quarto para que ela finalmente notasse que aquilo tudo era real e para que finalmente acordasse.
ㅤㅤPânico.
ㅤㅤEm um movimento impulsivo de tentar fuga de alguma forma, levantou-se bruscamente da cama com toda a força que possuía em seu frágil corpo. O impulso voltou-se, o corpo fora jogado de volta para a cama, sentindo consequentemente a pele dos tornozelos e pulsos rasgarem.
ㅤㅤArame.
ㅤㅤO desespero, então, tomou conta completamente de seu corpo. Começou a gritar, a plenos pulmões. Gritos surdos de dor. Implorava por ajuda.
ㅤㅤSuas preces foram ouvidas. A ajuda chegou.
ㅤㅤA porta lentamente abriu-se e um vulto adentrara ao quarto. Era alto, praticamente irreconhecível, trajava negras vestimentas pesadas que o protegiam do calor e do fogo. Havia um cigarro entre seus lábios.
ㅤㅤOs olhos se arregalaram. Depois, ficaram estáticos. Começaram, então, a se derreter devido ao calor e ao medo e transformaram-se em lágrimas nojentas, cobrindo todo seu rosto ainda mais nojento e se misturando ao suor. Era impossível não reconhecê-lo. Recomeçou a gritar, porém, desta vez, suplicava por perdão. Dava mil e uma explicações, atropelando-se nas palavras, tossindo. E pedia por perdão novamente.
ㅤㅤEle a observava, sem se mover. Apaticamente ignorou todas as suas súplicas. Qualquer palavra que saísse daquela boca era completamente indiferente para ele.
ㅤㅤCalmamente, tirou uma garrafa de dentro do pesado manto.
ㅤㅤWhisky.
ㅤㅤOs olhos se arregalaram ainda mais.
NÃO, NÃO, NÃO! - gritava ou pedia ela.
ㅤㅤTerror.
ㅤㅤFicara completamente descontrolada. O restante da sua sanidade fora consumida pelo pavor de ser assassinada. Com mais força e incentivo do que antes, rasgou completamente seu pulso e suas mãos, e perdeu grandes pedaços de seus pés, em uma tentativa inútil de fuga.
ㅤㅤO incendiário bateu a ponta da garrafa na parede, quebrando uma parte do vidro, e jogou a bebida com seus cacos sobre o corpo da garota. Ela sentiu a pele e os cortes arderem com o álcool. Suas lágrimas, saliva e suor se misturaram à bebida.
ㅤㅤÓdio.
VOCÊ VAI MORRER, VAI QUEIMAR NO INFERNO! DESGRAÇADO!
ㅤㅤObservou-a com olhos vazios e ignorou-a novamente.
ㅤㅤLentamente, tragou o cigarro pela última vez.
Você é patética. Morra.
ㅤㅤSatisfação.
ㅤㅤO cigarro escapou por entre seus dedos, projetou-se em meio à fumaça e lentamente alcançou seu corpo alcoolizado. Corpo tal que, em segundos, tornou-se uma bola de carne-viva inútil.
ㅤㅤO manto fora jogado ao lado dessa bola. Pouco depois, o incendiário atravessava a rua, acendendo outro cigarro e se afastando calmamente, ouvindo as sirenes atrasadas ao longe.
ㅤㅤA casa toda queimou, derretendo o corpo e qualquer evidência, antes que os bombeiros chegassem. Tudo o que restou foram as insanas risadas, que ecoaram por todos os corredores enquanto ainda existiam paredes na casa.