29 de maio de 2011

Amor.

― Somos um só – disse, com sua voz seca e baixa, enquanto observava os olhos ingênuos adormecendo logo em seguida.
ㅤㅤOs dedos gélidos continuaram a acariciar-lhe a face, por toda a noite.
ㅤㅤO dia raiou. Aqueles inocentes olhos despertaram e em poucos segundos passaram a derreter em lágrimas, que ardiam os pequenos cortes sobre as vermelhas maçãs de seu rosto. Seu corpo estava completamente esticado e estendido sobre a cama, nu, preso nas extremidades por pesadas correntes. Havia enormes hematomas em toda a sua pele pálida, algumas manchas derivadas de veias que se estouraram, algumas gotas de porra. Os braços tremiam ao tentar forçar contra as correntes e a mordaça machucava sua boca e impedia-lhe de expelir qualquer som superior a grunhidos. Parou de se debater quando os olhos arderam com o reflexo do sol em uma grande e afiada lâmina de faca.
― Bom dia. – O sorriso era indecifrável.
ㅤㅤAbaixou a faca, aproximando-se mais da cama, das correntes e do rosto. Passou a língua calmamente sobre os pequenos cortes e o sangue e as lágrimas, dando uma leve mordida em seguida. Os lábios húmidos de sangue escorregaram até o lóbulo, onde se entreabriram.
― Sabia que eu te amo? – sussurrou, cravando em seguida os dentes no lóbulo com toda a força que sua mandíbula lhe permitiu e por todo o tempo que conseguira. Sua pele se arrepiava e sobressaía com o prazer que sentia ao ouvir as tentativas de relutar da garota. Podia ver exatamente o formato de seus dentes nos pequenos machucados em meio à vermelhidão e algum sangue. Os dedos deslizavam através dos fios de cabelo negros e alguns poucos resquícios de sangue seco. Sangue, muito sangue, por todo lugar. Aquele gosto parecido com ferrugem se misturava à sua saliva e a si mesmo. Precisava de mais.
ㅤㅤA lâmina deslizava realmente muito fácil através daqueles machucados e rasgava a pele, deixando o vermelho escorregar para fora bem devagar. Teve de se esforçar para não perder o controle e afundá-la de uma só vez. Por debaixo de toda aquela transparência branca havia um excitante mundo agitado de veias, órgãos, tripas, peles. Tudo pulsava, enquanto os ossos brancos e vermelhos e pareciam apertar e sufocar toda aquela pulsação. Aquilo era vida, aquilo era realmente vivo.
ㅤㅤDeslizou a língua com tanto cuidado alternando entre movimentos fortes que parecia fazer sexo oral entre algumas veias e órgãos; considerando aquilo muito mais prazeroso do que enfiar o pênis em algum buraco melado e não tão apertado, ouvindo gemidos falsos e forçados.
ㅤㅤApós receber alguns cortes demorados e cuidadosos, o corpo da garota passou a lutar contra os desmaios e espasmos inevitáveis. O seu amado namorado já havia drenado todo o vinho do qual precisaria para acompanhar sua refeição, e apenas separava os melhores e mais macios pedaços daquela carne viva. Quase não havia mais vida naqueles olhos derretidos e tristes, que acompanharam a própria morte, quando ele se levantou e empunhou uma pequena machadinha.
― Nós somos o que comemos, amor – contou, enquanto levantava a lâmina acima da cabeça – E portanto, eu farei com que sejamos um só. Para sempre.
ㅤㅤO mesmo sorriso indecifrável de antes moldou seus lábios. Os olhos derretidos mantiveram-se abertos mesmo assim, observando aquele fio de sol aproximar-se violentamente e instantaneamente, na mesma velocidade com que o resquício de vida que ainda possuía corria para longe de si. Limpou com as costas da mão o vinho espirrado em sua face, e então se tornaram um só. Para sempre.