14 de março de 2011

Morte Natural.

ㅤㅤAgrada-me lembrar da alegria que chegava junto do nascer do sol em meu corpo e fazia com que eu, pálida e pequenina e frágil, corresse e acordasse a todos. Meu pai e eu abríamos a porta da frente, sentíamos o ar frio cortar nossas faces, sorríamos para o acordar da natureza nas árvores e observávamos e ríamos do chão de besouros que amanheciam com seus cascos para baixo e não podiam se mover. Moviam as patinhas desesperadamente e rapidamente, e eu achava isso divertido. Não entendia porque meu pai me obrigava a levá-los para a grama, onde se seguravam com força e caminhavam para mais um dia, onde eu nunca os via. Eles se escondiam de mim... E só apareciam novamente na manhã seguinte, quando tudo se repetia. Até que um dia ele me contou que os besouros agiam daquela forma por que ficavam em pânico, se sentiam incapacitados, já que não podiam se mover e com o tempo morriam, se permanecessem daquela forma. Lembrei-me de todas as vezes que ri e senti uma culpa muito grande. Sempre tive uma simpatia grande por qualquer tipo de forma viva que não fossem seres humanos. Passei a acordar todos os dias mais cedo para levar os pequenos até a grama, durante minha estada na chácara. O último besouro que eu colocava na ponta da grama trazia-me um sorriso à face e a sensação de missão cumprida para o coração.
ㅤㅤO desjejum geralmente era rápido e logo saíamos pela porta com um pequeno pote de iscas, anzóis, linhas e tudo o mais. Imitava meu pai e apoiava a vara de pescar sobre o ombro enquanto caminhava orgulhosa ao seu lado em direção ao lago. Vários amigos nos cumprimentavam pelo caminho, e muitos deles ainda perguntam sobre o que aconteceu com meus inocentes cachinhos castanhos. Acomodávamo-nos bem próximos da água e sentíamos o dia esquentar com o passar das horas, o sol indo ao alto do céu e os peixes mordendo as iscas. Sobre as iscas, eu não tinha nojo delas... Contudo realmente me era estranho a apatia com que ele apertava seus dedos contra seus corpos relutantes e assim separava-os ao meio, dobrando-os e espetando-os ao anzol. Eu preferia simplesmente não ver. É.
ㅤㅤQuando o sol estava bem acima de nossas cabeças e minha barriga começava a roncar e reclamar por comida, resmungava e enchia o saco do meu pai para que comêssemos algo. Porém, eu não queria sair daquele lugar, queria que o almoço simplesmente aparecesse ali. Coisa de criança, tanto a preguiça quanto a vontade de aproveitar os momentos. E então deixávamos as varas de lado e ele colocava uma faca na minha mão. Era pesada, eu mal podia segurar. Em minha outra mão ele colocava um peixe, também meio desproporcional pra mim, aqueles que ele ria ao ver que eu tinha dificuldade em puxar para fora da água. Dava as instruções para tirar a barricada e me observava. Quando eu tinha o azar de pegar um peixe ainda vivo, ele se mexia na minha mão trêmula, geralmente quando eu tocava a lâmina na lateral de seu corpo. Um arrepio corria por toda a minha espinha e o peixe escorregava por entre meus pequenos dedos, e se debatia na terra. Meu pai o pegava e o mergulhava na água para tirar a terra, e eu imagino como ele se sentia ao ter novamente seu oxigênio por poucos instantes antes de morrer. Então eu tentava segurá-lo novamente e a faca parecia deslizar das minhas mãos quando eu começava a cortar o peixe, e eu me cortava ao segurar e tudo ficava envolvido em sangue. Buscava com os dedos através do corte irregular a parte que eu devia tirar. Ardia. Tudo era escorregadio, tudo era estranho. Depois de algum tempo e esforço, os pequenos órgãos boiavam por alguns segundos até as piranhas os alcançarem e devorá-los. Observava o sangue se espalhar e esvair lentamente na água enquanto meu pai fazia perfeitamente em segundos o que eu demorava alguns minutos, erroneamente. Guardávamos os pequenos cadáveres e os levávamos para o almoço.
ㅤㅤMinha fome se esvaía como o sangue dos peixes no lago e eu comia muito pouco no almoço. Deixava o peixe de lado e tentava disfarçar para que meu pai não percebesse. Logo estávamos sentados novamente à beira do rio, e geralmente pela tarde pegávamos o bote. Eu me sentia ainda mais importante por estar no bote, no meio do lago, ao lado do meu pai, usando aqueles bonés que todo pescador usa. Sorria para todos e ficava extremamente animada. Meu pai já me conhecia, e sabia que eu usava essa animação pra disfarçar a vontade que eu tinha de devolver os peixes ao rio depois de tê-los matado com minhas próprias mãos. Nós pegávamos um, eu olhava sorrindo e dizia: “É muito pequeno! Temos o dia todo, somos bons, podemos pegar maiores!”, e colocava-o lentamente de volta ao rio. Ele remexia o topo da minha cabeça com a mão em um tipo de carinho e fingia que era verdade. As poucas vezes que fisgávamos piranhas era um problema para devolver... Levei uma mordida uma vez, mas fora da água ela é relativamente fraca, não há do que reclamar. Só pensava que ela devia ser mais grata, mas permanecia em silêncio. E assim aproveitávamos a tarde, suávamos, reparávamos no ar abafado, aquele ar de final de dia. Encostávamos o bote na margem de mãos vazias, vitória! Sentávamos desleixados sobre a grama para olhar o pôr-do-sol, folgando os bonés na cabeça e ficando em silêncio, pensativos, por muito tempo. Às vezes já era noite quando levantávamos de forma sincronizada e caminhávamos quietos de volta.
ㅤㅤSem carne no jantar. Geralmente era ovos ou miojo ou massa em geral. Assim que terminávamos a refeição, levávamos algumas coisas para beber até a mesinha de centro da sala, trazíamos agasalhos e baralho e sentávamos no sofá antigo de couro, de frente um para o outro, tendo como nosso expectador a antiga televisão bege, que por sinal nunca fora ligada na minha presença. Conversávamos, ríamos, ficávamos em silêncio para ouvir os ruídos da natureza ou algo estranho, ríamos de novo, tomávamos um gole, saíamos para olhar a lua, voltávamos e jogávamos baralho até eu simplesmente não lembrar de mais nada, ou seja, dormir e deixá-lo falando sozinho. Só o que sei é que acordava em minha cama na manhã seguinte, praticamente sempre no mesmo horário, para mais um dia exatamente igual. Mas aquela não era a minha casa, ou eu não teria tanta empolgação pela rotina. Eu só ia lá de vez em quando. E os finais de tarde em que arrumávamos as coisas e partíamos eram demasiadamente tristes para mim. Sonhava com o momento em que ia voltar para fazer tudo de novo, e de novo. Já dentro do carro, senti um aperto no coração e puxei a manga da camisa do meu pai. Ele olhou e eu limpei a lágrima que caíra com as costas da mão.
― Ei, calma, o que houve? ― escutei ele dizer. ― Nós vamos voltar, você sabe!
ㅤㅤLimpei mais uma lágrima.
― Eu sei, pai... Mas, até lá, quem vai ajudar os besouros?
ㅤㅤPassamos o restante da viagem em silêncio, entre alguns soluços.

2 comentários:

  1. Miojo 4 queijos? HEAHAEUEAHE.

    Agora indo ao que interessa;
    Nem li todos os seus textos ainda e já sou fã da forma com que você os elabora como coloca as palavras e o vocabulário que utiliza, o enredo então nem se fala, gostaria de ter toda essa criatividade.
    Mais uma vez parabéns!

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