26 de março de 2011

Realidade Paralela.

ㅤㅤAbri os olhos agitada, com a camisa banhada em suor e o corpo pálido trêmulo. Liguei o pequeno abajur ao lado da cama e olhei ao redor, buscando algum perigo. Vi as fotos e os recortes, os brinquedos e os livros e Dimmu balançando o rabo. Fui me acalmando aos poucos. Meu pequeno quarto sem janelas tingido de bege era o meu canto, meu lugar.
ㅤㅤNunca vi com os próprios olhos a realidade fora de minha casa. Passei todos os nove anos de minha vida dentro de minha casa com meu cachorro e com meu pai, pelos quais tenho muito carinho. Sei que possuo uma mãe, mas nunca a vi, apesar de que gostaria de vê-la. Ela nos abandonou sem dar-nos explicação e não acho isso certo, nunca entendi isso. Mesmo ela tendo feito isso, papai sempre falou bem dela, falava de seu amor e dizia que não posso sentir raiva por isso, que um dia as coisas se ajeitariam. Não sei o que é raiva.
ㅤㅤNão sei o que é raiva e não sei como são vários sentimentos, mas sei de muitas outras coisas. Existem escolas e, como não frequento, papai me ensina, durante algumas horas do dia, as coisas que eu deveria aprender lá. Certa vez ele me explicou que nosso mundo funciona, basicamente e infelizmente, à base de papel e metal. Costumam chamar isso de dinheiro. As pessoas trocam esses papéis coloridos e esses metais redondos por coisas de que precisam, como comida. Já vi meu pai chorar uma vez porque não tinha os papéis, e senti meu peito doer um pouco. Queria que aquelas lágrimas parassem de descer.
ㅤㅤPara conseguir esses papéis, as pessoas tinham de realizar alguma tarefa, continuadamente e frequentemente, geralmente todos os dias. Chamavam isso de trabalho e meu pai trabalhava todos os dias, dentro de casa, para poder cuidar de mim. Sempre admirei o trabalho dele. Ele cuidava de pedaços das pessoas, de suas memórias, de suas histórias. Papai consertava livros. Colava suas páginas com carinho, emendava rasgos e fazia com que ficassem novos. Entre as mãos, erguia o livro ao alto e observava com um olhar sincero de alegria. Parecia representar algo importante para ele. Cuidava também dos momentos das pessoas, dos segundos e das horas. O tempo das pessoas parava e, desesperadas por algum motivo, elas levavam seus relógios para que ele consertasse. Ele os abria e mexia em várias pequeninas peças, fazendo com que o tempo das pessoas continuasse a correr e suas vidas continuassem a se encurtar. Segundo ele, viviam todas correndo, nervosas, preocupadas. Me perguntava se aquilo era pressa para morrer, coisa que papai disse que acontecerá com todos um dia.
ㅤㅤAo contrário de mim, papai saía de casa todos os dias. Não me deixava sair com a justificativa de que o mundo é muito sujo e violento, que sou frágil e inocente e que não merecia sofrer entrando em contato com gente assim. Ele parecia temer que eu visse qualquer coisa do lado de fora, ou que conversasse com qualquer outra pessoa que não fosse ele. Por isso, há dois anos, ele trouxe Dimmu para casa, e ele se tornou meu segundo amigo. Dimmu era um filhote frágil como eu quando chegou, mas hoje é gordo e forte e corre por toda nossa pequena casa. Ele também nunca saiu... Mas veio de fora.
ㅤㅤDimmu e eu estávamos indo dormir quando papai avisou-nos que sairia para entregar os pedaços das pessoas e voltaria logo. Ele desliga o telefone sempre antes de sair e tranca tudo. Abracei-o, dei um beijo de boa noite e ele me deitou entre as cobertas com Dimmu, e dormi rápido apesar deste estar respirando pesadamente com a língua de fora. Acordei com Dimmu pulando em mim, e percebi que já era dia. Caminhei por toda a casa e não encontrei papai, mesmo chamando por seu nome em voz alta. Aquela dor no peito voltou, e aumentava a cada instante alheio que passava. As horas se arrastavam lentamente e levavam minhas lágrimas junto delas, deixando-me realmente mal quando a noite, sorrateira, chegou novamente. Isso nunca havia acontecido antes.
ㅤㅤDesobedecendo tudo que me foi ensinado e pedido até hoje, tomei Dimmu em meus braços e procurei o molho de chaves que papai mantinha escondida na gaveta. Tremia muito só de me aproximar da porta, quase não consegui abri-la. Senti um odor forte e seco que me fez tossir muito. Tudo era cinza, tudo era sujo, tudo era sem vida. Vi um carro pela primeira vez, e ele veio em minha direção, senti medo. As pessoas eram diferentes de papai. Um frio me arrepiava a espinha sempre que meu olhar se encontrava com os delas e eu me afastava. A água era escura e senti-me mal ao tomar. Queria encontrar papai e pensei que se abrisse a porta ele estaria ali. Lágrimas quentes desceram pelo meu rosto, minha visão ficou embaçada e um líquido claro e viscoso e ruim saiu pela minha boca, com uma sensação horrível que nunca havia sentido antes. Estava fraca e todos me olharam de uma forma... Má. Eu costumava gostar de rir e de ver meu pai rir, mas as risadas de quem estava lá eram diferentes e igualmente más. Acho que descobri o que era estar doente.
ㅤㅤProcurava meu pai entre as pessoas e Dimmu também parecia não estar muito bem. Eu estava suada e minha pele parecia estar envolta por algo escuro. Ainda chorava quando escutei uma voz: “Procurando seu pai, garotinha?”. Ele parecia ser uma boa pessoa, apesar de seu sorriso ser diferente do de papai. Fiz que sim com a cabeça e ele segurou minha mão com a sua própria, dizendo que me levaria até papai.
ㅤㅤChegamos a uma casa. Não era parecida com a minha, tinha um ar estranho. Haviam outros homens parecidos com ele lá, e meus olhos não encontraram papai entre eles. Meus braços estavam fracos e coloquei Dimmu no chão. “Papai?”, pensei. Os homens riram. “Se quiser ver seu pai, terá que fazer um favor a nós antes”, disse o homem que me guiou até lá. Não compreendi, mas comecei a chorar instintivamente. Eles chegaram perto de mim e puxaram meu vestido. Recuei, chorei, apanhei, sangrei e chorei de novo. Foi horrível, como tudo fora de casa. Estranhamente parecia que minha voz havia sumido quando saí de casa, porque não emiti um som desde então. Acho que enervei mais aqueles homens por isso.
ㅤㅤAbracei Dimmu deitada ao chão. Eu estava suja e sangrando e machucada. Aquele homem, rindo, se aproximou novamente de mim com um aparelho estranho e prateado nas mãos. Tremi e me encolhi, Dimmu rosnou. “Ainda quer ver seu pai?”, ele perguntou. Não conseguia responder. “Quer ou não?!”, mais agressivo dessa vez, e apontando aquele aparelho estranho para mim, que parecia algo perigoso. Fiz que sim com a cabeça. Ele riu, todos riram. “Então irá vê-lo agora” disse, enquanto mexia no aparelho.
ㅤㅤSubitamente, a dor passou. Eu estava mergulhada em sangue e Dimmu parecia preocupado comigo. A arma estava jogada ao chão e os homens olhavam para mim. Eles agarraram suas próprias faces e puxaram e rasgaram a pele, revelando rostos iguais ao de papai. Eram todos iguais a papai. Minhas lágrimas eram frias e vermelhas desta vez, Dimmu os mordia e era chutado logo após isso. Então fechei os olhos e me esforcei bastante para dormir. Dormir eternamente, enquanto estava sufocada pelo sangue e seu gosto.
ㅤㅤE aquelas gargalhadas acompanham minha mente desde então, fazendo questão de me lembrar do quão nojento o ser humano é a cada instante do que ironicamente costumam chamar de vida.

5 comentários:

  1. Muito bom, apesar de ser bem pesado, esse texto

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  2. Bom seu blog
    seguindo*-*
    segue?http://cantinho10.blogspot.com/

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  3. Embriagou-me a narrativa. De fato que apresenta lições e suas sequências... impecável. Bom descobrir este espaço, irei acompanhar mais com certeza.

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  4. Texto incrível.
    Dispensa comentários, me prendeu demais a atenção, me desliguei de tudo a minha volta, parece até que ele me puxou pra uma 'realidade paralela'. '-'
    O teu estilo de escrever é instigante.
    Muito bom mesmo.
    Parabéns!

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  5. Nossa que texto! O começo demorou um pouco pra pegar mas a partir do terceiro parágrafo não dá pra parar de ler. Muito bom mesmo, lerei os próximos ;D!

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